quinta-feira, 31 de maio de 2012

O mendigo ou o leitor: o que mais nos deveria chocar?




Surgiu no Facebook uma imagem bastante curiosa, na qual um homem de barba e cabelos brancos, de vestes encardidas, calçado aberto e uma grande sacola sobre um dos ombros - aparentemente, um morador de rua - folheia um livro. Ele está numa livraria, ambiente que (em tese) reúne pessoas cultas, que cultivam o hábito da leitura e que se dispõem, algumas com algum sacrifício, a gastar seu dinheiro e seu tempo com palavras impressas num papel.

Certamente é do aspecto econômico do leitor frequentador de livrarias - um sujeito com possibilidades para consumir - que advém o espanto das pessoas com tal imagem. 

Como é que um suposto mendigo, que a princípio não tem dinheiro para morar dignamente, se alimentar adequadamente ou se vestir com qualidade, aparece ali naquele ambiente de consumo, demonstrando tamanha familiaridade com aqueles corredores e aquelas estantes repletas de livros? Como pode alguém assim, carente de tudo que nos é essencial, valorizar aquilo que seria possivelmente a última prioridade, o maior luxo, o mais nobre passatempo, o mais sofisticado investimento? 

Para mim, frequentador (já não tão) assíduo do Centro Cultural São Paulo, na rua Vergueiro, que tantas vezes já dividi mesa com moradores de rua na biblioteca e ao lado deles me sentei na sala de cinema, isso não é algo assim tão inédito de se ver, ainda que pareca incrível a tanta gente. Como bem dizem os Titãs na canção "Comida", que não há quem não conheça, "a gente não quer só comer", "a gente não quer só dinheiro", mas sim a vida em sua plenitude, devidamente assegurado o livre acesso aos bens culturais - como o livro. A beleza da cena está em supor que (aparentemente) ele não é segregado por ser o que (aparentemente) é - beleza para mim equivalente à de ver que um dos mais importantes espaços públicos de cultura da capital paulista cumpre, à revelia de certas diretrizes, a sua função de proporcionar a todos a diversão e arte que todos queremos.

Dito isso, cabe a mim dizer que o mais impressionante é que, apesar de ser o Brasil a sexta maior economia mundial, apesar de os nossos governantes ostentarem os bons resultados de várias iniciativas de transferência de renda e promoção social, apesar de não falarmos noutra coisa senão em "nova classe média" e "crescimento econômico", é fato inegável que persiste em nosso país um imponente abismo social, que priva boa parcela da sociedade de seus direitos mais básicos - como a moradia, por exemplo. Que, nesta imagem, o direito à leitura pareça ter se feito valer com ares de milagre, trata-se apenas da já velha constatação de que temos uma cultura literária inconsistente, bastante fechada, pouco democrática e pouco acessível.

O que mais nos deveria chocar? Um homem que lê ou um homem que não tem onde morar?

sábado, 19 de maio de 2012

É possível falar em justiça no futebol?


Profundo admirador do Bayern München, fiquei extremamente decepcionado com a derrota do time alemão para o Chelsea na final da UEFA Champions League, chegando a classificar o resultado da partida como uma tremenda injustiça. Pouco tempo depois, mais calmo, decidi ponderar a sentença com a seguinte pergunta: é possível falar em "justiça" quando se trata de um jogo, ainda mais quando é de futebol? 

Schweinsteiger lamenta a perda da última cobrança do Bayern (Foto: Reuters)

Que resultado seria justo para esta edição da Champions League? 

Que vencesse o futebol mais bonito? Fosse assim, o Barcelona teria ganhado outra vez. 
Que vencesse o ataque mais poderoso? Fosse assim, o Real Madrid teria sido o campeão. 
Que vencesse o time mais equilibrado e cuja casa era a sede da final? Fosse assim, o Bayern teria levantado o caneco. 

Venceu o time mais desacreditado dentre os grandes clubes da competição, formado por uma brilhante e decadente geração de craques sem nenhuma conquista expressiva, que soube derrubar silenciosamente, um a um, todos os seus adversários. Venceu o time que, dos quatro semifinalistas, nunca havia conquistado o torneio mais importante do futebol mundial depois da Copa do Mundo de seleções. Venceu o time que viu seus heróis ressurgirem no momento mais importante de sua história. Fernando Torres, quando os carrascos do Barcelona ainda poderiam liquidar o sonho inglês na semifinal. Peter Cech, que se agigantou na hora em que mais precisavam dele. E Drogba, o maior de todos, que ao longo do torneio fez de tudo. Uma atuação impecável do começo ao fim, coroada com o gol decisivo na disputa de pênaltis.


Cech e Drogba festejam o primeiro título do Chelsea na Champions (Foto: Reuters)

Particularmente falando, detesto o time do Chelsea. (Sempre torço para que os blues, financiados pelo bilionário mafioso russo Roman Abramovich, percam qualquer disputa, seja para quem for!) Não bastasse isso, torci muito pela vitória do Bayern, equipe de história, tradição e camisa, base da seleção alemã. Infelizmente, porém, sou obrigado a admitir, não sem tristeza, que talvez nesse caso seja possível, sim, falar em justiça. Por todo o percurso ao longo desta edição da Champions, o Chelsea mereceu vencer.

domingo, 13 de maio de 2012

Flanelinhas: a solução passa pela regulamentação




Esta semana, o assunto dos "flanelinhas" tomou conta de parte do noticiário e das postagens de jornalistas e blogueiros. No sábado, o jornalista Fábio Seixas relatou em seu blog a lamentável situação que tem enfrentado para estacionar seu carro na porta de casa. Um dia antes, na sexta-feira, Robson Morelli também tratou do tema, discutindo o problema no que tange aos eventos esportivos ocorridos na cidade de São Paulo.

Tudo começou na noite de quarta-feira, nos arredores do Estádio Municipal do Pacaembu, zona oeste da capital paulista, quando 53 pessoas foram presas pela polícia por "exercício ilegal da profissão".

No dia seguinte, no Estádio do Morumbi, zona sul, a chamada Operação Flanelinha teve continuidade, resultando na prisão de mais 26 pessoas. A previsão é que hoje, durante a final do Campeonato Paulista, a PM atue novamente no Morumbi.

Meu comentário à questão toda, e que parte da enquete promovida por Morelli em seu blog, é o seguinte:

 A única opção racional, econômica e socialmente viável para a cidade é a regularização da atividade, feita pela Prefeitura Municipal, a partir da qual seriam cadastrados os profissionais responsáveis pela cobrança de estacionamento e também pela vigilância dos automóveis. Ainda que a profissão de guardador de carros seja regulamentada e prevista por lei desde 1975, falta muita disposição por parte do poder público para solucionar o problema das atuações ilegais. 

Muito me assustaram - ainda que fossem previsíveis - tanto o caráter das opções oferecidas pela enquete promovida no blog do Estadão quanto o número de votos que cada uma delas recebeu. 

Até o momento, mais de 300 pessoas opinaram que os flanelinhas "deveriam ser banidos das ruas". Ora, e iriam para onde? Para o limbo? Para uma outra dimensão? Ainda que exerçam sua atividade de forma irregular e muitas vezes se utilizem de métodos condenáveis para obter dinheiro, eles fazem parte da sociedade e não se pode simplesmente riscá-los do mapa (como se isso fosse possível). É preciso inseri-los na cadeia produtiva, fornecendo meios para que a tarefa realizada por eles seja adequada a todos.

É impossível, nos dias atuais, achar razoável parar o carro em qualquer lugar sem que nada aconteça e sem que seja preciso pagar por isso. Mesmo nas periferias, são cada dia mais escassas as áreas livres e seguras para se deixar o carro. Longe de ser um problema específico, trata-se de uma questão que diz respeito diretamente à estrutura da cidade de São Paulo como um todo. 

O uso do transporte individual privado (o carro) é legítimo, é um direito. No entanto, diante da conjuntura crítica da mobilidade urbana, toda medida que iniba o motorista a retirar seu veículo é bem-vinda (desde que, obviamente, haja investimento de maneira séria, intensa e eficaz na utilização de meios alternativos de locomoção, como as bicicletas, e também na melhoria do transporte coletivo público).

Voltando às opções da enquete, é um tremendo engano pensar que os flanelinhas "só existem porque os motoristas pagam". Para começo de conversa, eles existem porque não têm outra ocupação. E, antes que outros argumentos caducos possam emergir, digo que muito me impressionaria que alguém que pudesse contar com outra possibilidade de emprego optasse por trabalhar na rua, debaixo de sol e de chuva, vigiando os carros dos outros, na maioria das vezes a troco de um punhado de moedas. Realmente não dá pra dizer que "ganham sem trabalhar", pois estaríamos sendo no mínimo sádicos. Trata-se evidentemente de um meio de sobrevivência.

Fica claro, portanto, que a solução para os vários e desagradáveis impasses que envolvem os flanelinhas depende de uma solução inclusiva, que não prejudique os motoristas, que proporcione ganhos para a cidade e que principalmente ofereça uma oportunidade para os cidadãos dependentes dos sub-empregos.