quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A fragilidade da verossimilhança


Um filme delicado que conta uma história de amor. É deste modo que o cineasta Aluizio Abranches justifica "Do Começo ao Fim", longa-metragem que estreia no circuito comercial nesta próxima sexta-feira (27). De fato, ao tatearmos possíveis definições para o mais recente trabalho do diretor de "Um Copo de Cólera" (1999), cujos temas centrais (e interdependentes) são a homossexualidade e o incesto fraterno, esta sintética categorização talvez seja, em última análise, apropriada. No entanto, apenas encontra aplicação e sustentação por conta das inúmeras inconsistências narrativas que se revelam ao longo da trama. E "delicado", definitivamente, estaria mais para frágil que para sutil.

Franciso e Thomaz são irmãos, ambos filhos de Julieta - o primeiro, fruto do casamento com o argentino Pedro; e o segundo, com o arquiteto Alexandre, atual marido da serena médica. Desde cedo criam entre si um vínculo afetivo muito forte, alimentado pela felicíssima tranquilidade de uma família rica "que não precisa fazer história". É neste ambiente familiar para lá de idealizado, ao melhor estilo "comercial de margarina", que os dois garotos, separados por uma distância de seis anos de idade, descobrem a cada episódio cotidiano uma cumplicidade ilimitável. Após a morte do pai de Francisco e, logo em seguida, da mãe de ambos, os dois rapazes recém-crescidos se veem confrontados com a perda do sentimento de eternidade cultivado durante a venturosa infância. É justamente a partir daí que, dando continuidade a um processo natural, entregam-se à materialização de um amor que não encontra resistência para se fazer absoluto.

É bastante nítida a intenção de elevar o amor ao plano do sublime. Durante esse percurso, porém, ocorrem deslizes que comprometem de maneira drástica a verossimillhança do enredo. O mais grave dos pecados, não resta dúvida, foi o apagamento dos necessários (ou, ao menos, possíveis) conflitos que se poderia supor na história. A consequência desta omissão foi a apresentação de um desfecho sem a mínima força.

Tudo se desenrola a partir de uma perspectiva interna: a relação entre os dois irmãos (que jamais brigam senão por ciúme um do outro) não é acompanhada (de perto ou de longe) por mais ninguém. Fora uma pequena e despreocupada suspeita por parte dos "futuros falecidos" Pedro e Julieta, quando eles ainda eram pequenos, ninguém mais parece se dar conta desta intimidade insólita que caminha para o mais chocante dos extremos. O conveniente salto temporal (que assassina estrategicamente os únicos observadores) só ajuda a eliminar por completo as tensões sociais. Nada de amigos, vizinhos, colegas de escola ou de faculdade participando de alguma forma na história. Isolados e inabaláveis, vivem um para o outro de maneira plena. O comportamento complacente do viúvo Alexandre perante os dois - ele decide morar sozinho, deixando a belíssima casa da família para os filhos - é inaceitável. Dada a impossibilidade de um "crime sem suspeita", é tão absurdo pensar numa desesperadora aceitação quanto num gigantesco descuido do fato de que, além de irmãos, Thomaz e Franciso são homens que se amam eroticamente.

Não bastasse a imperdoável ausência de conflitos externos - como se fosse possível pensar num relacionamento homossexual e incestuoso(!) sem o menor eco de enfrentamento social - é marcante a inexistência de conflitos internos. Não há o mínimo aprofundamento psicológico das personagens, as quais jamais se fazem conhecer individualmente; não se questionam, não refletem sobre si mesmas e sobre o amor que vivem. Além disso, a forçosa (e momentânea) separação do casal - quando Thomaz, nadador, aceita o convite para treinar fora do país - só é capaz de produzir um ciúme algo incongruente, deslocado.

"Do Começo ao Fim" está longe de comover, e tampouco é capaz de indignar. O incesto, tema recorrente nas artes, tão capaz de ordenar as maiores tragédias, se defende (sem ser acusado) da forma mais singela - senão tosca. Ao final, mal dá para concebê-lo como tal. A abordagem da homossexualidade parece tentar nos convencer de que este tabu não existe mais, e isto é talvez o que parece mais falso no mundo maravilhoso desenhado pelo filme. Em compensação, o sexo se impõe na tela de modo intenso, mas sem ser apelativo - o que parece ser bom para o propósito do filme, qualquer que seja ele.

O que talvez mais decepciona é a constatação de um certo descuido do belo: raras são as cenas de verdadeira beleza, frequentemente acompanhadas por uma desagradável trilha sonora - que simplesmente não precisaria existir. A passagem em que os dois dançam tango, por exemplo, desde o início nos força a pensar sobre como poderia ter sido linda; mereceria uma dedicação maior.

Para a triste surpresa deste espectador, o grande destaque do longa (cujo conteúdo, em tese, seria o mais chocante possível) termina sendo a presença constante do humor - este sim, caprichado e certeiro.

Em tempo: Soube no debate com Abranches, após a pré-estreia no CinUSP, que o cineasta planeja uma comédia em seu próximo projeto. Só espero que ele não acerte novamente apenas nas piadas.