sexta-feira, 18 de novembro de 2011

"Você não me quer como aluno da USP"

Este blogue tem sido, até então, destinado a publicações bissextas de minha autoria, em geral motivadas por eventos considerados críticos e relevantes cultural, social ou politicamente.

Desta vez, concedo uma exceção e abro espaço para um ótimo texto do economista Cleber Pelizzon. Trata-se de uma reflexão fundamental - e, em certa medida, inédita em termos de perspectiva - a respeito da situação política vivida atualmente na Universidade de São Paulo.

Boa leitura,
Laion Castro

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Você não me quer como aluno da USP

por Cleber Pelizzon
11/11/2011


Um grande amigo pediu minha opinião sobre os acontecimentos recentes na USP. Agora longe de São Paulo, quis saber como alguém da USP e, além disso, da FEA (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade), vê toda essa situação. Realmente de longe fica difícil entender. Temos de passar por uma cortina de fumaça criada pelos mais diversos meios de comunicação, é bem verdade.

No entanto, não posso me colocar em uma posição de esclarecimento dos fatos, por si só. Já existem relatos suficientes para isso, de alunos que estavam nas assembleias ou no momento da ocupação. Já existem também diversas análises interessantes sobre o que aconteceu (aqui e aqui). Estou somente na posição de falar como um aluno da USP que ao mesmo tempo é da FEA, ou seja, um monstro formado por ambiguidades.

Sou aluno da FEA. Trabalho durante o dia, 10, 12, até 14 horas por dia. Estudo à noite. Ou melhor, vou às aulas quando posso. Como trabalhador, pago meus impostos. Como somente vou à USP para assistir às aulas e nunca depredei o chamado patrimônio público, sou um bom beneficiário dos cidadãos que, com seus impostos, pagam por minha educação. Não sou “vagabundo”, não fumo maconha no campus.

Mas você não me quer como aluno da USP. Fazendo o que eu faço atualmente, estou simplesmente colocando seu precioso dinheiro no bolso. Do conhecimento que adquiro nas salas de aula, faço uso somente em meu benefício, pois consigo um emprego melhor, um bônus melhor no final do ano, mais lucro para meu empregador. Mas, ainda assim, muitos acham que me querem como aluno da USP.

Como alunos da USP, aqueles que participaram e participam das assembleias, aqueles que invadiram e invadem reitorias, estão, permitam-me, fazendo o que se espera de um aluno da USP. A Universidade é o lugar onde se questiona, onde se reflete sobre nossos problemas, onde se ensina e onde se aprende. A universidade é o lugar para indignar-se, para pensar em um mundo melhor. Utópico? É este o papel da universidade: proteger o pensamento crítico que vai mudar o mundo.

O que os vagabundos fizeram foi justamente trazer a atenção para diversos problemas que enfrentamos atualmente. Com a escolha unilateral do atual reitor, temos o fantasma da ingerência. Com as ações friamente calculadas do atual reitor, que desqualifica os protestos dos estudantes manipulando (ou seria compactuando com?) a mídia, trazendo a atenção para a camiseta de marca, para a depredação (que, sabemos todos, não existiu), temos o fantasma da perseguição, da tentativa de nos tornar todos dormentes. Com os gritos de “vagabundo” e “maconheiro”, mergulhamos no abismo do debate raso sobre as drogas em nossa sociedade. Com os gritos de “mimado” e “playboy”, nos perdemos na escuridão que é o debate da segurança pública.

Quem você quer como aluno da USP são justamente eles, e não eu. São aqueles que, gozando de sua juventude, são revolucionários, sabem que seu papel é pensar em maneiras de mudarmos para melhor, e não aqueles que veem a universidade como um instrumento de formação de técnicos que, mais tarde, como arquitetos, não se perguntarão quantas casas faltam em nossos países, como bem disse Allende. São aqueles que defendem uma universidade livre para pensar, mas também que defendem uma sociedade livre para pensar; que, da mesma maneira que não querem uma polícia que persegue estudantes, não querem uma polícia que persegue membros de uma comunidade no morro.

Mas, e a ocupação? Sou a favor. Apesar de ter ocorrido daquela maneira, após decisão de assembleia contra a ocupação (pelo menos o que li foi que foi aprovada mais tarde, depois de uma redução drástica de quórum), aqueles alunos tiveram a coragem de se expor e expor a situação crítica em que nossa universidade (e a sociedade) se encontra. A coragem daqueles alunos (que não são ingênuos como muitos disseram e sabiam que seriam presos e humilhados) permitiu que meu grande amigo, admirador de Allende e Mário Quintana, pudesse discutir a universidade, a polícia e a sociedade com colegas, familiares, estudantes e trabalhadores que, de outra maneira, estariam tão distantes da USP.

Não desejem estudantes dormentes. Desejem estudantes sonhadores.

Em tempo: os alunos da FEA, e da USP, querem segurança, o que não quer dizer que querem a Polícia Militar no campus. Os alunos possuem propostas claras e objetivas para a solução da segurança: mais iluminação (você sabia que é a política de segurança pública mais eficiente?), abertura da universidade para circulação de pessoas, ou seja, maior integração à cidade (o que significa que não nos vemos como um oásis no meio da cidade), policiamento por uma guarda universitária equipada e composta por mais mulheres (queremos sim, um policiamento independente e que possa prezar pela segurança das pessoas sem ser um instrumento de coerção, coação, repressão). Todas são medidas comprovadamente eficazes.

Cabe, ainda, apontar que o assassinato de nosso colega da FEA não foi a causa da PM no campus. Como? Ora, a presença da polícia militar já estava ocorrendo de forma mais intensiva no campus antes do ocorrido. Não se pode dizer que o número de incidentes diminuiu com a PM (a USP possui estatísticas de ocorrências). A PM no campus é, sim, consequência deste ocorrido, pois foi usada para criar um embate entre bons e maus: maus são os estudantes, que querem fazer o que bem entendem no campus sem policiamento; bons são o reitor e o governador, que passaram por autoridades preocupadas com a segurança dos estudantes “a favor da PM”, dividindo o movimento estudantil, colocando a população contra os estudantes.

(Agradeço ao caro amigo Tainã Novaes, crítico e sonhador)

sábado, 14 de maio de 2011

A norma popular nos livros didáticos: desafio ao preconceito linguístico

Um dos mais graves erros cometidos pelos falantes de nossa língua, por incrível que possa parecer, não é de ortografia nem de concordância, mas de preconceito. Motivado pela ideologia e sustentado por um punhado de mitos e conceitos distorcidos, os quais encontram eco em todas as esferas da sociedade, inclusive na sala de aula, o preconceito linguístico está longe de acabar e revida sempre com violência àqueles que o combatem.

Indicado e distribuído pelo MEC a quase 500 mil alunos de 4.236 escolas por meio do Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), o livro Por uma vida melhor, da coleção “Viver, aprender”, foi duramente criticado em alguns veículos de mídia, dentre os quais o blog do jornalista Reinaldo Azevedo, da revista VEJA. O motivo é a presença de um conteúdo que apresenta a norma culta ao lado da norma popular, desvendando os mecanismos de ambas sem que haja preferência de uma em relação à outra:



Ora, adotar uma postura reativa ou mesmo “desconfiada” em relação ao livro e à metodologia de ensino nele contida só demonstra a profunda ignorância de tio Rei (e de outros como os colunistas do Poder Online, do Portal iG) a respeito dos estudos da Sociolinguística e seu papel no combate ao preconceito linguístico - que linguistas como Marcos Bagno, dentre outros, já demonstraram ser um preconceito fundamentalmente social.

Uma das grandes dificuldades encontradas pelos profissionais de Letras egressos da Universidade é saber que tudo aquilo que foi estudado, discutido, pesquisado e proposto na Academia dificilmente chegará efetivamente à sociedade. Como atuar além das dissertações e teses que amarelam nas estantes? Como promover transformações num âmbito maior do que as microssalas que abrigam simpósios e colóquios?

Sabemos que a gramática tradicional e a norma culta, cada vez com menos prestígio entre os linguistas, são permanentemente valorizadas e cultivadas como valor na sociedade. Ambas apresentam-se não só como um padrão ideal de linguagem a ser perseguido pelo falante, mas também como um elemento de seleção e exclusão no mercado.

Como reverter esse quadro senão oferecendo, nos bancos escolares, algo além do ensino normativo da língua portuguesa? Evidentemente, é necessário educar apresentando a perspectiva normativa, afinal ela nos serve, principalmente durante o período de alfabetização, como instrumento de comunicação - trata-se de um código em comum. Por outro lado, não menos importante se faz a educação para a diferença, para as particularidades, para aquilo que é local, genuíno, para aquilo que escapa à norma.

Ver, portanto, que a gramática normativa cedeu espaço para a apresentação das variantes como uma realidade da língua - e não como uma aberração, um erro, algo que não existe - é razão de celebração! Enfim, uma iniciativa que parece, sem exagero, mudar o quadro de dificuldades da extensão universitária. Caminhamos, assim, para uma educação que permita de fato a percepção e o questionamento das contradições à nossa volta.